Os negócios e os modelos empresariais de gestão, operação e – por que não? – de governança corporativa (GC) vêm sendo desafiados pelo dinamismo da nova economia (NE). A governança corporativa, na prática, consiste nas regras que dão sentido e rotina ao jogo empresarial e devem conferir agilidade, autonomia e transparência aos jogadores – sócios, investidores, integrantes de um negócio – independentemente do seu porte ou da sua velocidade de crescimento. Contudo, a maioria das ferramentas de administração não está preparada para um ambiente de extrema incerteza. Essa é uma frase de Eric Ries em um dos clássicos livros de startups: A Startup Enxuta. A governança corporativa é, naturalmente, um dos instrumentos de gestão desafiados por esse ambiente de incerteza. Nascida nos anos 90, ela vem sendo aprimorada por mais de três décadas, com saltos de maturidade após crises de compliance, como nos episódios da Enron (2001), gigante americana da área de energia, e da Lehman Brothers (2008), empresa de serviços financeiros. As histórias dessas falências ganharam páginas de livros e telas de cinemas e se tornaram sinônimo de um descontrole empresarial e fraude que não se via desde 1929, quando da primeira quebra da Bolsa americana. Historicamente, tanto os episódios de manipulação americanos como os recentes casos épicos de corrupção no Brasil, levam a uma reflexão sobre a necessidade de profissionalização da administração dos negócios e quanto à proteção dos acionistas em relação a eventuais abusos de gestores e de stakeholders. A governança não é uma pílula mágica que, sozinha, fará as mais de quatro mil startups brasileiras sustentáveis ou transparentes. Entretanto, é incoerência empreender qualquer tipo de negócio desprezando o legado de práticas que ajudaram a economia global a sanar o conflito entre propriedade e gestão (conflito de agência). Até porque essa dor não deixa de existir na nova economia. Ao contrário, ela aumenta! Ainda assim, as práticas de governança foram, em sua maioria, desenvolvidas em um contexto de crescimento mais linear do mercado. Não havia tantas empresas digitais que crescem exponencialmente, criptomoedas que desafiam as regulações, além de um grande fluxo de investimentos que, cada vez mais, miram alvos que se movem a três dígitos anuais. Nas boas práticas do mercado ou na literatura de governança recente, também não se encontram recomendações de como o capital de risco deve tratar outliers excêntricos. Eles surgem em garagens do Vale do Silício, Israel, China, Índia, Brasil, ou em qualquer outro país, em um mundo de inovação sem fronteiras. Assim há, pelo menos, dois sentidos em que podemos analisar a relação entre a governança corporativa e a nova economia: Primeiro, as startups, partindo de sua criação até um porte significativo. Nestas a governança precisa ser extremamente flexível e adaptável para cada estágio do seu rápido crescimento. Essa flexibilidade, no entanto, não significa superficialidade nas práticas ou fragilização dos controles. Exemplo prático: reuniões semanais com investidores. Nestas, em vez de somente DRE (Demonstração do Resultado do Exercício), relatórios e números, os fundadores recebem perguntas do tipo “Como podemos ajudá-los?”. Trata-se de uma relação muito mais próxima entre sócios e investidores do que em sistemas de governança habituais. Existem ainda outros desafios como fundos e investidores que, corretamente, condicionam seus aportes ao poder de impedimento de fundadores, conflitando diretamente seus sonhos. Outras regras, como as de vesting equity e antidiluição, precisam ser definidas para resguardar os detentores do capital nas sucessivas rodadas de investimento. Há também situações específicas do ecossistema brasileiro que vão além do custo Brasil e da corrupção. O mercado aqui, por exemplo, ainda não converte expectativa futura de faturamento em múltiplos de EBITDA nos valuations. Além disso, os retornos aos acionistas são, na maioria das vezes, muito menos acelerados do que se espera. Governança no Brasil não é para os fracos. Agora, também não será para os lentos. Há um segundo sentido de análise da relação entre a nova economia e a governança corporativa: o das empresas tradicionais e consolidadas, que são ou já foram empresas de sucesso e estão dispostas a se reinventar na busca de uma nova empresa heroica. Elas estão intensificando relações com startups por meio de parcerias, investimentos, programas de startups, hackathons, incubadoras internas e externas, equity (participação), aquisições/incorporações, startups internas ou, simplesmente, comprando serviços e produtos de startups ou, ainda, compartilhando coworkings. Nesse contexto, qual é a razão deste livro? Na minha jornada com startups, aprendi várias coisas, porém uma em especial: um pouco daquela tal governança de que eu tanto reclamava nas grandes empresas é necessária! Mas qual é a medida em uma startup? Como adaptá-la a cada ciclo de seu intenso crescimento? E como as empresas tradicionais devem se relacionar com startups do ponto de vista da governança corporativa? Essas foram as inquietudes que me moveram nos últimos anos. Mergulhei profundamente no tema por meio de várias viagens ao Vale do Silício, de uma formação como conselheiro de administração na Fundação Dom Cabral e de até um mestrado em Governança e Sustentabilidade, que me deu a sustentação científica e a base desse livro. Tudo isso reforçado pela experiência de investimentos com diferentes valores e a atuação como advisor/conselheiro de startups e de grandes transformações empresariais em negócios digitais. O livro captura a visão dos 58 fundamentos do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) e os coloca na perspectiva dos estágios de investimento em startups (Anjo, Semente, Série A, B, C...). Inclui também vários casos reais de empreendedores e investidores do ecossistema de startups, propondo reflexões sobre as práticas de governança para cada etapa do intenso ciclo de crescimento de uma organização exponencial. Em um dos bate-papos realizados, por exemplo, um executivo à frente de inovações de uma grande empresa de São Paulo comentou o argumento usado quando recebeu a seguinte questão: quais os critérios para a empresa gastar um orçamento de R$ 2 milhões por ano na aceleradora de startups sem ter a certeza de retorno? A resposta foi enfática: “medo de ficar de fora!”. Parece haver novos critérios de seleção e priorização de projetos e de investimentos. A nova economia pode desafiar o status quo da governança corporativa em empresas tradicionais. Por isso, faz-se necessário manter práticas que se comuniquem com as startups em novo ritmo que, quando desgovernado, pode oferecer riscos a uma velocidade totalmente diferente da que os sistemas de governança tradicionais estão acostumados a enfrentar. É nesse contexto que tanto empresas joviais como tradicionais têm um mesmo desafio: encontrar modelos flexíveis que mantenham o alinhamento das práticas a cada estágio de crescimento e/ou que promovam relações adequadas com esses novos negócios. Sem isso, com a mesma rapidez com que a nova economia nos surpreende, podemos ver surgir novas “Enron ou Lehman Brothers digitais” ou, no limite, sufocar motores da inovação com fardos de regulações e compliance pesados demais. Não temos ainda, no Brasil, um ambiente que crie boas condições ao empreendedorismo para qualquer tipo de empresa, e isso não é diferente para startups. Há esforços recentes como o da Comissão de Valores Mo- biliários (CVM) com a Instrução CVM 588 e do Conselho Monetário Nacional com a regulamentação de fintechs. A inovação sempre estará à frente da regulação. Logo, as práticas de governança não precisam somente de atualização, mas de um modus operandi oxigenado e vivo que, sobretudo, mantenha sua constante adaptação alinhada ao crescimento exponencial do negócio e hiperconectado com as questões fiscais e regulatórias (que precisam ser aceleradas nos próximos anos no Brasil). Este não é um livro que explorará detalhadamente a nova economia. Também não insistirá em particularidades de gestão e operação de startups. Há uma vasta literatura sobre esses temas em livros específicos, como o próprio A Startup Enxuta, de Eric Ries; The Startup Owner’s Manual, de Steve Blank e Bob Dorf; Venture Deals, de Brad Feld e Jason Mendelson, além do belo e recente trabalho dos brasileiros Sandro Magaldi e José Salibi Neto no livro Gestão do Amanhã. A jornada aqui busca refletir sobre a relação entre esses dois importantes temas das últimas décadas (governança corporativa e nova economia), partindo da análise das boas práticas, passando pelo desafiador contexto brasileiro e reunindo abordagens. Como no livro Organizações Exponenciais, de Salim Ismail, Michael S. Malone e Yuri Van Geest (2015), que sugere a capacitação do conselho de administração para que os representantes estejam mais bem preparados frente às ameaças diruptivas ao negócio. Ainda que temas contemporâneos, governança e nova economia parecem estar se desenvolvendo em estradas diferentes. Mas se elas levam a um mesmo destino, por que não discuti-las sob uma mesma perspectiva? Essa é a inquietude que motivou este livro, cujo objetivo é abrir caminho para o aprimoramento das práticas de governança e para as discussões quanto a sua flexibilidade e escalabilidade de acordo com o crescimento das startups. Em última análise, espera-se também contribuir com o crescimento do ecossistema de startups no Brasil, de forma a considerar os preceitos de longevidade, equidade, compliance e responsabilidade corporativa como partes integrantes e indispensáveis desse ecossistema inovador. A jornada dos próximos capítulos será dividida em quatro seções. Na Parte 1, “Explorando governança corporativa e nova economia”, equalizamos conceitos e colocamos governança e nova economia sob uma mesma perspectiva. Na Parte 2, são elencados outros aspectos importantes para essa relação, e que vão além das dimensões do IBGC, batizadas de “Growth Governance” (Governança do Crescimento). Já na Parte 3, “As práticas de governança em uma visão sequencial e balanceada”, a proposta é simplificar as práticas de governança corporativa para a nova economia, colocando-as na perspectiva dos estágios de financiamento de startups. A Parte 4, “Conclusão”, sugere lacunas observadas e aponta a necessidade de pesquisas e novas discussões futuras sobre esse tema. Seja muito bem-vindo! Espero que este livro possa provocar insights para que investidores, empreendedores, advogados e grandes empresas possam criar a sua própria forma de governança para essa nova dinâmica exponencial. Anderson Godz, Curador da Comunidade e Autor do Livro Governança & Nova Economia. Investidor, Advisor, Conselheiro de Administração por FDC e IBGC.
Mestre em Governança Corporativa e Sustentabilidade.
Criador do Board Canvas e do MasterClass G&NE, o mais inovador programa brasileiro de governança para a nova economia.