A Constituição Federal de 1988 trouxe importantes avanços para o Brasil, sendo considerada uma “Constituição cidadã” por ter deixado para trás um regime ditatorial e instituído um Estado democrático garantidor do exercício dos direitos individuais e sociais. Entretanto, justamente por, naquela época, estarmos saindo de um regime totalitário, a Carta Política acabou por alargar em demasia esses direitos, sem atrelá-los aos seus correspondentes deveres, ou mesmo a fontes de custeio. Como resultado, atualmente observamos uma profunda conscientização sobre os direitos, que origina uma “judicialização” e uma “litigiosidade” sem precedentes na sociedade brasileira. A conscientização sobre os deveres correlatos, por sua vez, não vem ocorrendo na mesma medida. E tais deveres vêm, inclusive, sendo repassados a terceiros, especialmente o custo deles decorrente. O bônus fica com uns, e o ônus, com outros. Isso gera uma cisão naforma mentis da sociedade brasileira e dos homens que a constituem, já que a relação direito-dever está se perdendo. “Cisão” e “mentalidade” conduzem-nos ao conceito de “esquizofrenia”, palavra de origem grega cujo significado écérebro dividido. Passamos a considerar “esquizofrenia legal” a cisão existente entre as finalidades que a norma legal deveria garantir e fomentar na sociedade e nos homens que a constituem e os resultados que faticamente geram. As pretensões e finalidades definidas no texto da lei dirigem-se para um lado, e os resultados práticos decorrentes acabam indo para outro, ainda que isto ocorra de forma inconsciente, sem que o legislador e o destinatário da lei se deem conta. Ora, não se pode nunca olvidar que a sociedade é formada por pessoas. E estas são mais importantes que a lei, uma vez que a lei deve ser feita para servir ao homem e aos valores sociais elegidos por este, e não ao contrário. O problema é que nessas situações em que as leis são propostas com um objetivo, mas alcançam outros, com consequências imprevisíveis quando do seu nascedouro, mesmo se consideradas “imperfeitas”, a princípio elas não deixarão de ser “jurídicas” e construirão uma realidade diversa da que foi planejada “com força de lei”, além de contar com todo o aparato repressivo estatal para a sua exigibilidade e imposição – dura lex, sed lex. Um caso prático: a lei de estágio Essa distorção pode ser verificada muito concretamente no dia a dia, embora nem sempre nos conscientizemos disso, como no caso da nova lei de estágio de estudantes, a qual possui uma enorme relevância educacional, pois formará, doravante, o modo de agir, de “re-agir” e de pensar de milhares de jovens brasileiros. Ao analisar a justificativa do projeto de lei que deu origem a essa nova legislação, constatamos que os fundamentos éticos e os valores sociais e morais que o legislador reconheceu como importantes e que pretendeu garantir por meio de uma nova lei foram: a) a formação e a qualificação dos jovens para o trabalho; b) o combate ao desemprego dos jovens; e c) a concessão de maiores garantias e segurança aos jovens, incentivando um maior número de empresas a oferecer programas de estágio. Contudo, o resultado constatado imediatamente após a sua entrada em vigor foi uma redução drástica nas ofertas de estágio. Isso demonstra, por si só, que a intenção legislativa de garantir fundamentos sociais e morais não irá, ao que parece, ocorrer faticamente. Se as ofertas de estágio diminuem, por consequência, a adequada formação e qualificação dos jovens para o trabalho também decrescem na mesma escala. E mesmo para os estágios que continuarem a ser ofertados é bom registrar que a nova lei traz inúmeros direitos e garantias sem seus correlatos deveres, o que acaba por distorcer a adequada formação dos jovens em relação ao trabalho. A limitação da jornada de estágio, por exemplo, acarreta uma “quebra” na jornada diária, prejudicando a continuidade laboral do estagiário. A atividade produtiva da empresa prosseguirá além das 6 horas do estágio, de modo que muitas das tarefas em que estagiário se encontra envolvido serão concluídas sem a sua presença, não educando o estudante a se responsabilizar pela conclusão de suas tarefas de trabalho. Em razão dessa nova lei, educaremos uma forma mentis nos jovens brasileiros de busca constante por novos direitos sem a preocupação com os correlatos deveres. A mentalidade que ficará em nossos jovens é a do excessivo protecionismo e assistencialismo sem a contrapartida necessária, bem como a do total descomprometimento com o próprio trabalho. Uma mudança se faz necessária Não podemos aceitar essa legislação e esta tendência “legal-esquizofrênica”. A mudança que se faz necessária é a busca por leis faticamente válidas. Afinal, uma lei somente é boa se faz o ser humano progredir pelo trabalho e pela adequada educação. Para tanto, sugerimos que se comece pela imediata modificação da nova lei de estágio dos estudantes, de forma a inserir na legislação orientações que venham a educar e a fomentar no espírito dos jovens estudantes brasileiros – futura força política e econômica da nação – a ideia da responsabilização pessoal, da meritocracia, do prazer no trabalho, da autorrealização, do autossustento. Com isso, estaríamos dando um primeiro passo, procurando afastar a “esquizofrenia jurídica” de uma lei específica, formadora e educadora dos jovens brasileiros, futuros condutores do País. Essa mudança também chamaria a atenção dos estudiosos e dos operadores do Direito para a problemática da esquizofrenia legal, que impera atualmente no sistema jurídico como regra, sem a devida atenção às suas nefastas consequências. Afinal, não devemos nos esquecer de que é necessário ultrapassar a sociedade de normas e conquistar a sociedade de pessoas, na qual a pessoa humana é efetivamente mais importante que a lei, não podendo o indivíduo estar nunca em posição servil a esta. Alessandro Spiller